fonte: istoe.com.br - edição 2331/ 25 Julho 2014
por - Paula Rocha
Em uma noite fria da Cidade de São Paulo, um grupo composto por advogados, engenheiros, médicos e empresários se reúne num salão amplo e bem iluminado no segundo andar de um prédio, na zona leste da capital. Vestidos de branco e carregando flores e velas, cada um deles está ali por motivos distintos, mas com o mesmo objetivo em comum: louvar os Orixás - divindades africanas - e oferecer seus corpos como "casa" temporária para espíritos de caboclos e outras entidades. Esse ritual, ou "gira" na linguagem da Umbanda, acontece quinzenalmente ao som de tambores e cânticos e sob a orientação do médium Rubens Saraceni, sacerdote umbandista. Além das profissões de prestígio dos frequentadores, outro detalhe chama a atenção: entre os mais de 200 médiuns, de ambos os sexos, presentes naquela noite, apenas três eram negros. A superioridade branca desse Terreiro é um sintoma da nova composição de fiéis das religiões Afro-brasileiras. Antes frequentados majoritariamente por pessoas de origem humilde, baixas escolaridades e negros - grupos ligados à origem desses ritos -, os cultos de matriz africana, como a umbanda, o candomblé e a religião dos Orixás (leia as características de cada religião na pág. 53), conquistam cada vez mais a classe média branca e escolarizada do País. Segundo os últimos dados do IBGE, 47% dos adeptos das religiões afro no Brasil são brancos e 13% do total dos fiéis tem nível superior completo-índice acima da média nacional, de 11%.
A advogada Flora de Almeida, 29 anos, é o retrato desse crescente tipo de devoto.
Criada por pais Católicos não praticantes, ela sempre sentiu falta de professar uma religião. "Mas não me sentia à vontade em instituições cheias de dogmas e regras nas quais acredito", diz Flora. Em 2012, enquanto enfrentava o término de um relacionamento amoroso, ela decidiu buscar apoio na Umbanda, fez o curso e começou a trabalhar em um Terreiro. Meses depois, no entanto, conheceu o Candomblé e se apaixonou. Hoje ela é "filha" do sacerdote Armando de Ogum e ainda está assimilando os conceitos de sua fé. "É como se eu voltasse a ser criança. Tenho que aprender tudo do zero, e é um aprendizado muito bonito. Fui acolhida dentro de uma família", diz.
As religiões de matrizes africanas chegaram ao Brasil entre os séculos XVI e XIX, trazidas pelos escravos, alguns deles sacerdotes, que eram traficados para cá. Como, naquela época, a única religião aceita no País era o Catolicismo, os devotos, os devotos dos Orixás tiveram que se comportar como cristão, frequentando ritos e cultuando santo católicos. Dessa devoção aos Orixás, com preceitos kardecistas e crenças indígenas. "As religiões afro-brasileira nasceram marginalizadas e, ao longo do tempo, foram estabelecendo laços com pessoas influentes, que ajudavam a diminuir o preconceito na sociedade em geral", diz Reginaldo Prandi, professor-sênior do departamento de sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e o autor do livro "Mitologia dos Orixás". "As pessoas de classe média e alta já vêm se integrando aos cultos afro ha muito tempo, mas são discretas devido às suas posições sociais", conta o sacerdote Rubens Saraceni. "Mas essa integração, principalmente à Umbanda, cresce cada vez mais."
Na esteira do aumento do grau de instrução dos fiéis das religiões afro surgiram escolas e cursos de Umbanda e Candomblé, que ensinam os conceitos teológicos por trás das atividades praticadas nos centros religiosos. Já existe até uma faculdade de teologia umbandista reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC), a Faculdade de Teologia Umbandista (FTU). Outro setor que prospera com inserção dos mais abastados nos cultos de matriz africana é o comércio de artigos afro. Só a loja Mãe Africa, considerada a maior do País, oferece mais de dois mil itens em 340 m2 de área - o mais caro deles, uma peça em bronze que reproduz uma rainha iorubá (grupo étnico africano), custa R$ 15 mil. "A ideia de que as religiões afro são coisa de gente pouco instruída ou pobre está totalmente errada", diz Prandi. "Hoje, a camada pobre do Brasil, a base da pirâmide, é, em sua maioria, evangélica".
Nascida em uma família de classe média católica e com ascendência oriental, a empresária Juliana Ogawa, 37 anos, presenciou de perto a mudança no perfil dos fiéis afro. Aos 13 anos, levada pro um tio, ela procurou a Umbanda pela primeira vez, atrás de cura ou explicação para as dores de cabeça que sentia constantemente, e que não foram diagnosticadas. Durante sete anos seguintes, ela dedicou à religião, descobriu-se médium, mas abandonou os rituais, procurou outras formas de exercer sua espiritualidade e só voltou para a Umbanda em 2009. "Antes, era raríssimo encontrar alguém de ensino superior. Hoje, todas as pessoas da casa que frequento têm terceiro grua completo", conta Juliana. Assumir sua opção religiosa, no entanto, não é mais fácil atualmente do que a duas décadas. "O preconceito ainda existe e parece até pior do que antes", diz ela. "Os neopentecostais tratam as religiões de matriz africana como inimigas e esse intenso combate contribui para a evasão dos humildes", acrescenta Prandi.
Os novos fiéis de classe média, por sua vez, fazem questão de não esconder sua religiosidade. Caso do médico Rogério Pascale, 38 anos, seguidor da religião dos Orixás ha sete anos. Toda vez que cumprimenta o Babá King, sacerdote do Templo Oduduwa, em Monguagá (SP), o clínico geral se ajoelha e encosta a testa no chão, em sinal de reverência, mesmo que seja dentro do hospital em que trabalha. "Nessa religião não há julgamento e respeitamos as pessoas pelo que são", diz Pascale. "Aqui não importa quem ganha mais ou menos. Somos todos iguais."